“O valor não traz escrito na fronte o que ele é. Longe disso, o valor transforma cada produto do trabalho num hieróglifo social. Mais tarde, os homens procuram decifrar o significado do hieróglifo, descobrir o segredo de sua própria criação social, pois a convenção dos objetos úteis em valores é, como a linguagem, um produto social dos homens. [...] É, porém, essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma do dinheiro, que realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em consequência, as relações sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência. [...]."
Karl Marx
– O Capital, livro I.
O fundamento da questão social
Nós sabemos que “na sociedade burguesa, quanto mais se desenvolve a produção capitalista, mais as relações sociais de produção se alienam dos próprios homens, confrontando-os como potências externas que os dominam” (IAMAMOTO, M. p. 48). Isso ocorre, nós também sabemos, pelo fato de que no sistema capitalista a produção da riqueza é socializada enquanto a sua apropriação é privada e concentrada nas mãos de poucos.
A origem dessa condição é a separação entre os proprietários dos meios de produção dos bens de consumo e aqueles que possuem apenas a própria força (física ou mental) como meio de subsistência. Estes últimos, para sobreviverem, precisam vender sua força como mercadoria para os detentores dos meios produção e, assim, ocorre a inversão de pessoas em coisas: os humanos são transformados, a partir do mercado de trabalho, em mercadorias cujo o valor consiste em produzem novas mercadorias.
No entanto, a mercadoria força de trabalho possui uma peculiaridade: ela não recebe do capitalista o seu real valor, isto é, o valor do seu trabalho. A força de trabalho produz mais do que ela recebe como compensação por seu trabalho e essa diferença entre o valor produzido e o valor recebido constitui-se a origem da acumulação de riqueza no capitalismo. Assim, o capitalismo é essencialmente excludente e desigual, pois sua maneira mesma de operar é a exploração do trabalho não pago.
No século XIX, nos explica Maria da Conceição da Silva Cruz, “com a intensificação das formas de exploração [do capitalismo], há um agravante na situação de penúria da classe trabalhadora denominada pauperismo, a miséria e a insegurança tornam-se permanentes na vida social, trazendo à tona a discussão sobre a “questão social” (CRUZ, M. C. S, 2014, p. 3). Diante do pauperismo, surgiu no século XIX, nos meios conservadores da Europa, a expressão “questão social” para representar as inquietações a respeito deste novo fenômeno.
A origem conservadora do tema da “questão social” fez com que durante muito tempo ela fosse vista como uma questão natural (as pessoas são naturalmente desiguais) ou como uma questão moral (a falta dos valores morais cristãos que propiciava as desigualdades). As soluções conservadoras possuíam cunho reparador e variavam entre as laicas (como a defesa da educação e da modernização iluminista) e as confessionais (a caridade e o retorno dos valores cristãos). Porém, como explica Reginaldo Guiraldelli, a questão social só pode ser entendida “a partir de uma perspectiva de totalidade, [...] [ela] precisa ser analisada com base no processo de acumulação e reprodução capitalista” (GUIRALDELLI, R., 2014, p. 101).
Neste sentido, a questão social precisa ser analisada sob um prisma ontológico, isto é, precisa ser tomada como imanente ao ser da sociedade capitalista e não como atraso ou questão moral. Além disso, tal perspectiva recusa tomar os efeitos (as mazelas, a pobreza, os problemas sociais) pela causa (a contradição constitutiva do capitalismo). Consequentemente, o prisma ontológico diferencia o que é a questão social do que são as suas expressões.
Justamente por possuir uma fundamentação ontológica, a questão social só pode ser resolvida se a sociedade capitalista for substituída por uma outra forma de sociabilidade: uma sociedade na qual a produção e a fruição das riquezas produzidas sejam socialmente distribuídas de maneira igualitária e justa.
2. A questão social no Brasil
O fato de que a questão social possua como origem e fundamento a sociedade capitalista (em especial a revolução industrial) não significa que ela se exprime da mesma maneira em todos os lugares e em todas as épocas. Como explica Iamamoto, devemos considerar o processo de reprodução do capital no seu “vir a ser”, isto é, “enquanto totalidade histórica não acabada, em processo de realização” (IAMAMOTO, M., 2015, p. 49). Além disso, Iamamoto lembra que “a reprodução das relações sociais de produção não se reduz à produção dos meios de produção” (IAMAMOTO, M., 2015, p. 49), mas amplificam as contradições sociais e políticas. Ou seja, embora a origem da questão social continue sendo sempre a mesma – a contradição entre capitalista e trabalhador – cada sociedade ou período histórico possui suas próprias especificidades.
Quais são as especificidades da questão social no contexto social brasileiro? Para Joseane Soares Santos, a categoria “modo de produção” é insuficiente para explicar a questão social, sendo necessária também a compreensão da categoria “formação social” (SANTOS, 2010, p. 130). Ora, quando nos voltamos para a formação social do Brasil fica evidente que o capitalismo brasileiro se desenvolveu de maneira conservadora, isto é, ele “não se operou contra o atraso, mas mediante a sua contínua reposição em patamares mais complexos, funcionais e integrados” (NETTO, 1996, p. 18). Isso também é afirmado por Santos, para ele na constituição do capitalismo brasileiro “a manutenção de características [pré-existentes ao capitalismo] vão se refuncionalizando ao invés de serem superadas pelo processo de modernização” (SANTOS, 2010, p. 129).
Podemos ver o desenvolvimento dessa lógica conservadora do capitalismo brasileiro recorrendo ao exemplo da passagem do trabalho escravo para o trabalho “livre” assalariado. Essa passagem não redunda na superação da questão racial. Ao contrário, o surgimento do trabalho assalariado recria e repõe a exclusão dos negros. Por meio da Lei de Terras que dificulta aos negros terem posse de terras e por meio de políticas públicas que favorecem a importação de mão obra europeia em detrimento do trabalhador negro que já se encontrava no país, o capitalismo brasileiro mantém e agrava a questão racial. Outros exemplos que podemos citar são o “bota abaixo” carioca e a “modernização” da cidade de São Paulo realizadas no início do século passado. Ambos envolveram a destruição das residências dos mais pobres nos centros das cidades e a sua expulsão para as regiões mais periféricas.
Cristiane Porfírio e Maiara Lopes recordam, que no século XVIII, “enquanto a economia mundial capitalista já se encontra constituída, o Brasil ainda era essencialmente rural (ou agrário) [...] (2013, p. 96). Entretanto, esse “ainda era” não deve ser tomado como signo de um atraso, mas como a operação mesma das forças dominantes brasileiras que sempre buscaram a conservação do status quo. Tanto é assim que, como demonstra Joseane Santos, no Brasil o capitalismo não significou a superação da fase agrícola pela industrial. Embora exista algum nível de industrialização, a maior parte das exportações do Brasil ainda é relacionada aos produtos agrícolas.
Como ressalta Marilena Chaui, o país supostamente atrasado e essencialmente agrário é, na verdade...
“o país historicamente articulado ao sistema colonial do capitalismo mercantil e determinado pelo modo de produção capitalista a ser uma colônia de exploração e não uma colônia de povoamento (à maneira dos Estados Unidos). A primeira “tem uma economia voltada para o mercado externo metropolitano e a produção se organiza na grande propriedade escravista”, enquanto na segunda “a produção se processa mais em função do próprio consumo interno da colônia, onde predomina a pequena propriedade”. Em outras palavras, a colônia de povoamento é aquela que não desperta o interesse econômico da metrópole e permanece à margem do sistema colonial, enquanto a colônia de exploração está ajustada às exigências econômicas do sistema” (CHAUI, M. 2013, p. 170).
Até quando?
Marx, no primeiro livro do Capital, falou que nas sociedades capitalistas o modo de produção do valor transforma os frutos do trabalho em hieróglifos sociais. Esse ocultamento da fonte do valor e do real papel desempenhado pelo trabalho permite reposição do capital sem grandes revoltas. No caso da sociedade brasileira, vivemos o constante brotamento de uma tragédia já conhecida, porém naturalizada. A nossa "questão social" é também a questão racial, a violência policial, o extermínio dos povos originários, a LGBTfobia, o abismo social entre ricos e pobres, os desastres ambientais causados pela exploração do agronegócio etc. Tudo isso são nossos velhos conhecidos, o nosso passado repetitivo. A questão é: até quando vamos permitir sua trágica repetição?
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