É ingenuidade acreditar que os jornais e mídia em geral apenas divulgam e fazem a cobertura dos fatos violentos. Na verdade, por meio de discursos e narrativas, sentimentos, ações e pensamentos são excitados na audiência. Por exemplo, a exposição frequente às notícias sobre violência resultam no aumento da sensação de insegurança e na produção de um constante medo da criminalidade.
No documentário Tiros em Columbine o cineasta Michael Moore pergunta às pessoas o que elas mais temem: se elas temem roubos ou a poluição provocada por uma fábrica. No local em que as pessoas se encontram, a taxa de criminalidade é quase nula e os níveis de poluição altíssimos. Entretanto, as pessoas temem mais os criminosos que a fumaça poluente. Qual o motivo? O documentário aponta que há uma super exposição midiática dos casos de roubo e assassinatos enquanto um perigo real e onipresente passa de modo despercebido por não aparecer nas telas. Certamente, é mais lucrativo expor de modo sensacionalista a violência cometida por indivíduos isolados do que a violência ambiental produzida por uma grande corporação.
Entre o cidadão de bem e o marginalzinho
Para falar sobre a relação entre a mídia e a violência, podemos relembrar um caso antigo, de 2014, mas muito representativo do que a imprensa brasileira faz. No caso em questão um rapaz negro, de 15 anos de idade, suspeito de ter cometido furtos, foi vítima de linchamento por parte de “justiceiros” que o deixaram nu e o amarraram em um poste. Na época a jornalista e ancora do principal jornal do SBT, Rachel Sheherazade, defendeu a ação dos justiceiros com as seguintes palavras:
"O Estado é omisso, a polícia desmoralizada e a Justiça é falha. O que resta ao cidadão de bem que ainda por cima foi desarmado? Se defender, é claro! O contra-ataque aos bandidos é o que eu chamo de legítima defesa coletiva de uma sociedade sem Estado contra um estado de violência sem limite. E, aos defensores dos Direitos Humanos que se apiedaram do marginalzinho preso ao poste, eu lanço uma campanha: faça um favor ao Brasil, adote um bandido."
O discurso de Sheherazade é um exemplo perfeito do vínculo entre mídia e violência, pois ele próprio é violento. Na fala de Sheherazade tudo aparece obscenamente invertido: os “justiceiros” — que amarram, espancam, desnudam e humilham o rapaz de 15 anos — não são violentos, mas “cidadãos de bem”. O jovem, vítima de estruturas sociais historicamente excludentes e violentas, não aparece como sujeito vitimado, mas como agente violento. Desnudar uma pessoa, espancá-la coletivamente, amarrá-la ao poste pelo pescoço e humilhá-la, não é, nas palavras da jornalista, um ato de violência, mas uma espécie de "legitima defesa". Em um país que a cada 4 horas uma pessoa negra é vítima de violência policial e que detém a terceira maior população carcerária do mundo, Sheherazade afirma que o linchamento é o "contra-ataque coletivo de uma sociedade sem Estado". Não deixa de ser contraditório que os membros dessa "sociedade sem Estado" sejam chamados de "cidadãos" (?) e que seus atos sejam julgados legítimos (?).
Por mais absurda e contraditória que possa parecer, a fala de Sheherazade foi amplamente defendida pela sociedade civil ao mesmo tempo em que ativistas dos direitos humanos foram atacados. Pior ainda, casos como o de Sheherazade não são únicos. Na verdade, desde que o jornalismo se transformou em entretenimento, vemos os chamados "jornais policiais" transformar atos de violência em verdadeiros espetáculos. Estamos diante do jornalismo gore no qual víceras, sangue, corpos despedaçados e pessoas desesperadas se tornam fonte de lucro das emissoras de TV e objetos de gozo da audiência.
A mídia e a construção do perfil do criminoso
Estamos acostumados a encarar a violência a partir de uma perspectiva patológica-criminal, o que nos leva a considerá-la episódica e como instante de quebra da normalidade. Neste caso, a violência seria um surto, uma irrupção, um excesso, uma "epidemia". De sorte, a violência é tida como um “momento de crise” e os agentes violentos vistos como monstruosos, degenerados, doentes e anormais. Consequentemente, a violência é vista como uma questão moral e o agente violento é considerado alguém que possui um desvio de caráter. Não é casual, portanto, que programas de TV especializados em traçar o perfil da pessoa violenta façam sucesso.
É comum vermos na TV e na Internet programas especializados em traçar o perfil do criminoso. Nestes programas, especialistas comportamentais (psicólogos, psiquiatras, pedagogos, investigadores etc) escrutinam a linguagem corporal, o passado, as práticas religiosas e os hábitos das pessoas consideradas violentas — que horas acordam, o que comem, quais substâncias usam, seus gostos estranhos, suas práticas sexuais, se tiveram algum trauma na infância, quais músicas ouvem, os filmes gostam, quais jogos jogam etc. Cada hábito, gesto, gosto ou ação é retroativamente avaliado como "sinais" de um mal que, por assim dizer, sempre esteve lá".
Desse modo, na tela a vida aparece como o enredo de uma novela na qual tudo existe em função de final previsível e calculável. Obviamente, quanto mais excêntrico, diferente e exótico for a vida do agente violento, mais suas ações aparecem como um destino inevitável e previsível.
O efeito psicológico dessa periodização e construção narrativa é poderoso. Por um lado, quanto mais fora do "normal" for a vida do agente violento, mais podemos nos tranquilizar. Afinal, o perfil da pessoa violenta aparecerá mais distante de nós e das pessoas que convivemos. Por outro lado, nosso nosso medo do diferente e daquilo que consideramos estranho é intensificado. Em suma, o efeito é conservador. Não precisamos de muito esforço mental para imaginar o impacto desses efeitos psicológicos em uma sociedade como a brasileira (que é estruturalmente racista, machista, homofóbica e desigual).
Invisibilidade na visibilidade contínua — a mídia e apagamento da gênese social da violência
Ora, o efeito poderoso de tomarmos a violência a partir da perspectiva patológica-criminal é que ela aparece como exceção, e, ao tornar a violência extraordinária e espetacular, os holofotes midiáticos ocultam a sua gênese social.
Ao reduzir a violência a uma questão moral, circunscrita à biografia pessoal do agente violento, a mídia encobre as determinações sociais da violência. A perspectiva patológico-criminal, ao culpabilizar excessivamente o indivíduo, transforma o agente violento em uma espécie anomalia que põe em risco o bom funcionamento da ordem social e gera uma crise de segurança.Consequentemente, todo esforço de criação de um "perfil do mal" redunda no aprimoramento das técnicas higienização social que se escondem sob os nomes de "pacificação" e "prevenção" à violência.
Por sua vez, ao tratar a violência de modo episódico e isolado, os mass media legitimam publicamente a higienização social. Além disso, essa forma da mídia abordar a violência reforça os padrões normativos de uma sociedade, afinal, quanto mais um indivíduo destoa dos padrões socialmente vigentes, mais ele se aproxima do perfil da pessoa violenta.
O resultado é a invisibilidade da violência na sua visibilidade contínua. Como explica a filósofa brasileira Marilena Chaui:
"a violência não é vista ali mesmo onde se origina e ali mesmo onde se define como violência propriamente dita, isto é, como toda prática e toda ideia que reduza um sujeito à condição de coisa, que viole interior e exteriormente o ser de alguém, que perpetue relações sociais de profunda desigualdade econômica, social e cultural, isto é, de ausência de direitos" (CHAUI, 2017, p. 41 — itálicos nossos).
A sociedade brasileira é incapaz de perceber que as próprias explicações que formula para explicar a violência são violentas. Para Chaui, isso decorre do fato da sociedade estar cega para o lugar efetivo da produção da violência: “a estrutura da sociedade brasileira” (CHAUI, 2017, p. 41). A violência real e constitutiva da sociedade brasileira é invisível por ser o modo de operação da própria sociedade. A prova mais cabal disso se encontra nas relações entre os diferentes extratos sociais. Na sociedade brasileira “as relações sociais e intersubjetivas são sempre realizadas como relação de um superior, que manda, e um inferior, que obedece” (CHAUI, 2017, p. 41). Em suma, a violência na sociedade brasileira não é um predicado acidental, antes, é o seu modo mesmo de operação. Só que essa violência estrutural não "televisiona" bem.
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